Fascínio pelos EUA: por que moradores de Governador Valadares veem a emigração como opção para uma vida melhor


Cidade de MG se tornou polo migratório devido a uma combinação de fatores, desde a economia local marcada pela estagnação até a formação de redes entre amigos e familiares de migrantes. [PUBLICAR VÍDEO 13360391]
É no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, que está localizada Governador Valadares, uma das cidades com maior fluxo migratório do Brasil. Entre os seus 257 mil habitantes não faltam histórias de pessoas que têm parentes ou amigos que se mudaram para os Estados Unidos em busca de uma vida melhor.
🔎Governador Valadares se tornou esse polo migratório devido a uma combinação de fatores, desde a economia local marcada pela estagnação até a formação de redes entre amigos e familiares de migrantes que acabam despertando o interesse pelos Estados Unidos em quem ficou na cidade natal. Mas esse fascínio começou muitos anos atrás, com a chegada de estrageiros durante a exploração de ferro na região (entenda mais abaixo).
Com o passaporte em mãos, a balconista Ana Maria Pessoa, de 65 anos, comemora a aprovação do visto americano. Em breve, ela pretende visitar os filhos, Kléber e Juninho, que saíram de Governador Valadares quando ainda era adolescentes em busca de melhores condições.
“Eu trabalhava numa lanchonete, uma situação muito difícil lá. Para um deles viajar, de 15 anos, tive que ir no cartório emancipar ele, fazer de tudo para mandar ele embora. Assim que chegou lá, ele ficou e casou com uma americana. Com o tempo, pegou o documento. Graças a Deus, meus filhos trabalham demais, não ficam à toa nem dia de domingo”, contou Ana Maria.
A valadarense viu a emigração como uma saída para que os dois fugissem da pobreza e da violência na comunidade onde a família morava.
“Os filhos da gente querem o melhor… Então falei: ‘Já que vocês querem, vou dar a vara pra vocês pescarem, porque eu não tenho condições’. Eu moro numa área de risco, perigosa, e falei: ‘É melhor eu sofrer com meus filhos longe do que ver um sair do caixão aqui, morto'”, disse.
Os EUA são a nação que mais recebe imigrantes do Brasil. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, cerca de 1,9 milhão de brasileiros vivem no país norte-americano.
Infográfico Governador Valadares
g1
Segundo especialistas, os motivos que explicam o alto fluxo de migrantes em Governador Valadares são os seguintes:
Economia local marcada por uma forte dependência do setor de comércio e serviços, com ausência de atividades industriais e extrativistas
Demanda por mão de obra nos EUA, sobretudo nas últimas décadas do século XX
Formação de redes de sociabilidade entre conhecidos, familiares e amigos de migrantes
Mecanismos facilitadores, quando a viagem irregular — através da fronteira — é atrativa devido ao baixo custo se comparada a uma viagem por meios legais
Cultura da emigração, causada pela própria história da cidade além da quantidade de moradores de Valadares que se estabeleceram nos Estados Unidos
Perspectiva de melhores condições financeiras, com a possibilidade de renda em dólar, os imigrantes conseguem se manter e manter seus familiares que estão no Brasil
Famílias transnacionais, ou seja, com uma parte dos familiares no Brasil e outra, no exterior
“São trabalhadores, são pessoas que gostam de trabalhar, vivem a vida, têm uma remuneração considerável lá, e isso daí é muito importante, tanto para o desenvolvimento da nossa cidade como para a família deles. Às vezes, é um pai de família que se desvincula da família para dar um sustento melhor”, afirmou Stéfano Couri, representante regional da Associação Brasileira de Agências de Viagens (Abav) no Vale do Aço.
A chegada de estrangeiros
Nos arredores do centro de Governador Valadares, casas de câmbio e lojas com “América” no nome fazem da cidade a “Valadólares” (entenda origem do apelido mais abaixo).
Em meados dos anos 1940, foi descoberta uma grande mina de ferro na cidade de Itabira, próxima a Valadares. No mesmo período, uma reforma foi iniciada na estrada de ferro que passava pela região.
Os empregados da empresa responsável pela reforma eram norte-americanos e vieram a Minas para trabalhar, trazendo consigo suas famílias e costumes. À época, os mineiros tiveram seu primeiro contato com a moeda estrangeira, já que os americanos a utilizavam para consumir na cidade.
A doutora e pesquisadora de migração da Universidade do Vale do Rio Doce (Univale), Sueli Siqueira, explica que, apesar do choque entre duas culturas completamente diferentes, Valadares se adaptou aos novos residentes.
“Por volta dos anos 1960, as pessoas já tinham essa experiência de convivência com esses americanos, nenhum deles levou algum brasileiro para os EUA, não aconteceu isso. Mas um engenheiro americano permaneceu aqui [em Governador Valadares], casado com uma portuguesa, e fundou uma escola de inglês”, explicou a professora.
Visão panorâmica de Governador Valadares
Fábio Monteiro/Inter TV dos Vales
Com a nova escola de idioma, os jovens mais ricos da cidade passaram a estudar inglês e, consequentemente, a participar de intercâmbios. Apesar de eles não serem os primeiros imigrantes, trouxeram a Valadares as notícias de que os EUA eram um bom lugar para trabalhar e ganhar dinheiro.
Em setembro de 1964, os primeiros migrantes partem para os Estados Unidos com a expectativa de melhores salários. O perfil deles era, majoritariamente, de homens jovens, que falavam inglês e tinham grande poder aquisitivo.
Conforme as pesquisas de Sueli Siqueira, que começaram nos anos 1990, cada um deles levou, no mínimo, mais 20 pessoas para os EUA, formando diversas comunidades de mineiros no país norte-americano.
Com o aumento da emigração e, consequentemente, do recebimento de remessas de dinheiro pelos familiares de migrantes, o fluxo de dólares na cidade aumentou, rendendo a ela o apelido de “Valadólares”.
“Nos anos 1980 e 1990, houve um período em que as remessas foram muito importantes para a economia valadarense, e ela superou um pouco essa debilidade econômica com esses investimentos em dólares. E esses investimentos foram realizados na construção de casas, prédios, para montar negócios… Durante um período, a economia em Valadares foi dolarizada, as pessoas pagavam as coisas em dólar”, explica a professora Gláucia de Oliveira Assis, coordenadora do Observatório das Migrações.
Mas esta realidade mudou muito nas últimas décadas. A partir de 2019, o governo norte-americano apertou o cerco contra imigrantes ilegais. As deportações aumentaram, a vigilância nas fronteiras se tornou implacável e o medo de quem largou tudo em busca de um sonho se tornou rotina.
Endurecimento da política de deportação dos EUA
Há 18 anos morando, trabalhando e criando os dois filhos nos Estados Unidos, ao lado do marido, a brasileira Rosângela Silva* tenta viver além do medo da deportação. Ela e a família saíram de Governador Valadares e entraram nos EUA pela fronteira com o México.
“Está dando para trabalhar muito pouco, ninguém sai de casa porque eles [policiais norte-americanos] iam fazer batida geral. Daí a gente sai de manhã, mas e a volta? Nem sabe se vai voltar para casa. A gente tá igualzinho criminoso, uai. A gente tem que sair às escondidas, não estamos vivendo mais, só vive com esse pesadelo”, disse Rosângela* .
Por lá, segundo Rosângela*, o cenário é de terror entre os brasileiros, que, agora, até se escondem em becos e esquinas para escapar das abordagens dos agentes de imigração nas ruas, reflexo do endurecimento da política de deportação do presidente norte-americano Donald Trump.
Desde o dia 20 de janeiro deste ano, quando tomou posse, dois aviões com deportados dos Estados Unidos chegaram ao Brasil – um total de 199 brasileiros repatriados, a maioria da Região do Vale do Rio Doce.
Um terceiro avião deve aterrissar nesta sexta-feira (21). Assim como da última vez, os deportados devem chegar pelo Aeroporto de Fortaleza, e não por Belo Horizonte, como vinha sendo feito.
A medida tem o objetivo de evitar que o grupo sobrevoe o território nacional algemado. O número de passageiros que chegará nesse novo voo não foi divulgado.
Rosângela*, o marido e os dois filhos estão em Massachusetts, estado norte-americano onde vivem desde que chegaram ao país. Lá ela trabalha como diarista. De acordo com o governo americano, 5% da população é de imigrantes brasileiros, muitos de Governador Valadares.
Assim como muitas famílias de estrangeiros em situação irregular nos EUA, a diarista e seus parentes precisaram mudar a rotina da casa. Compartilhar a localização dos celulares e alterar rotas estão entre as estratégias para tentar manter a vida que construíram fora do Brasil.
“O que tem de valadarense aqui que tá, assim, desesperado para voltar para trás, e não tá tendo condições, é muito”, contou Rosângela*.
Dona Tereza* é irmã de Rosângela Silva* e reza todos os dias pela família. Mesmo de longe, em Governador Valadares, ela compartilha o medo da deportação. O medo também tem base na questão econômica: Rosângela* não tem moradia, trabalho ou alguma renda possível na cidade mineira — todo o dinheiro que conseguiu como doméstica nos EUA serviu apenas para sustento dela e para ajudar parentes no Brasil.
“Queremos nossos familiares por perto, e está todo mundo muito preocupado com isso. Porque a pessoa está lá, vivendo a vida dela, e de repente volta para o Brasil assim, sem nada. As coisas estão muito difíceis. Ela não tem casa aqui, não tem nada. Tudo dela – o trabalho, a vida – está lá [nos EUA]. Ela nunca chegou a comprar uma casa aqui, não tem nada preparado para ela. Se ela chegar com o marido e os filhos, vão chegar sem nada”, disse Tereza*.
Desde o dia em que assumiu a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump assinou uma série de ordens para colocar em prática a agenda “America First”, ou “América em Primeiro Lugar”.
Entre elas estão o pacote para combater a imigração ilegal, que permite prisões de imigrantes em locais considerados protegidos, como igrejas e escolas, e a meta de detenções de 1,5 mil imigrantes ilegais por dia.
Além disso, Trump anunciou que vai ampliar um centro para imigrantes na base militar de Guantánamo, que fica na ilha de Cuba. O objetivo é enviar até 30 mil imigrantes presos para a unidade.
O primeiro voo da nova era Trump, no dia 24 de janeiro, chegou ao território brasileiro em meio a polêmicas sobre as condições as quais o grupo foi submetido ao longo do trajeto. Houve um desentendimento com a tripulação devido ao calor, e os 88 deportados abriram uma porta de emergência e desembarcaram, ainda algemados, por um escorregador inflável.
Segundo a Polícia Federal, o uso de algemas em imigrantes é praxe em voos fretados dos EUA para repatriação, mas elas são retiradas ao pousar no Brasil, já que os deportados não são considerados prisioneiros.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, ordenou a retirada das correntes e solicitou que os deportados fossem levados a Belo Horizonte em um voo da Força Aérea Brasileira (FAB). O Itamaraty cobrou esclarecimentos dos EUA pelo “tratamento degradante”.
“Porque ele [Trump] fala que vai tirar quem é criminoso, mas, se as pessoas são paradas e não têm documento, eles levam do mesmo jeito. Então, não é só criminoso que ele vai tirar. Criminoso é quem mata, rouba, faz coisas erradas. Mas a pessoa que sai para trabalhar honestamente, que está apenas buscando o sustento da família, não é um criminoso. É um pai de família, uma mãe de família, que está lutando para trazer o sustento para casa”, destacou Tereza*.
Para a pesquisadora Sueli Siqueira, medidas tomadas pelo presidente Trump podem diminuir a cultura da imigração, mas isso não quer dizer que o fluxo migratório acabou.
“O que vemos de diferente em relação às deportações está no discurso, o discurso de um presidente que transformou o imigrante no causador de todos os males do país. Atribuiu ao imigrante a responsabilidade pela violência e pelo desemprego, caracterizando-o ainda como um criminoso da pior qualidade, quando, na verdade, esses imigrantes são trabalhadores”, afirmou Sueli Siqueira.
Governador Valadares
Leonardo Milagres/g1
Praça do Emigrante, em Governador Valadares
Inter TV dos Vales
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas.
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